Novamente, não resisti. Fazia mais de dois anos que não acontecia, mas,
esta noite, o impulso veio como que somando todos os outros. Era onze e
meia da noite, aproximadamente, e eu estava no meu carro numa rua mal
iluminada. Tinha pegado um cruzamento errado e procurava voltar para o
caminho habitual. A rua estava deserta, mas logo vi uma mulher
caminhando apressada. Embora estivesse escuro, era fácil perceber que
era jovem. Não sabia ainda quanto, mas algo me dizia que não podia ter
mais de vinte e cinco anos. Por instinto, diminui a velocidade e, então,
percebi que estava acontecendo. Tentei manter a velocidade e passar por
ela, mas não queria isso. À medida que me aproximava, minhas mãos
tremiam, o coração disparava e parecia que eu ia perder a consciência se
não tirasse o pé do acelerador. Tentava manter os olhos na estrada, mas
era impossível. Cedi à tentação de não acelerar e frear um pouco foi
como retomar o ar após ter ficado muito tempo submerso na água.
Parei ao lado da moça, já era tarde demais. Abaixei a janela e a
moça me fitou com medo, inicialmente. Aparentava ter vinte e dois ou
vinte e três anos, era loira, rosto bonito, não muito alta, usava uma
blusa branca, com algum desenho, que pouco dei atenção, e calça jeans.
Carregava também uma pasta e uma bolsa: logo deduzi que seria estudante.
Eu estava de terno cinza, camisa branca, gravata vermelha e, nos meus
trinta anos, ainda conservo algo da juventude. Disse depressa com ar
simpático: “esse lugar é perigoso, não quer uma carona?”. Ela parecia
hesitar inicialmente, mas aceitou. Normalmente sou simpático, mas,
naquele momento, estava fingindo.
Quando entrou no carro,
logo prestei atenção nos olhos: eram azuis. Os olhos são importantes.
Assim como a juventude, quando se está “mais vivo” por assim dizer. Eu
aparentava tranquilidade, mas meus pensamentos estavam rápidos:
analisando, planejando, descartando... enfim, traçando o que iria fazer
nas próximas horas. Ela não aparentava estar nervosa, mas estava tímida.
Perguntei ainda fingindo simpatia: “onde você mora?” e ela respondeu
prontamente. Era a cinco quadras daquele ponto, não era muito longe. Não
tinha intenção de levá-la em casa, mas ela não podia desconfiar. Não
naquele momento. Puxei conversa sobre o que fazia: era estudante de
Direito e estava no último ano do curso. Uma grande ironia. Continuou a
contar algumas coisas sobre o curso e eu fingi prestar atenção: minha
mente já estava ocupada e aquilo não era importante. Falou até eu virar
numa ruela numa área comercial duas quadras antes da rua de sua casa.
Chamou-me a atenção e eu avancei alguns metros, calado, como se não
tivesse escutado. Ela me chamou a atenção novamente e, então, parei o
carro. Mandei-a sair do carro sem mais fingir simpatia. O rosto dela
empalideceu, mas logo pareceu entender que devia fugir. Ela saiu do
carro, deixando a pasta e a bolsa. Eu abri o porta-luvas peguei a
pistola e também saí. Já estava a alguns metros de distância quando dei a
ordem para ela parar, ameaçando atirar. Ela parou e se virou: estava
chorando, mas não dizia nada. Aproximei-me e a moça começou a implorar.
Não prestei atenção. Mandei-a se virar, ela obedeceu e, então, acertei-a
com a coronha da arma na nuca segurando o braço dela. Deixei-a cair
suavemente, já inconsciente. Nenhuma gota de sangue foi derramada, o que
era muito bom.
Tinha algum tempo antes dela acordar. Voltei
para o carro e peguei um estilete, que estava no porta-luvas, arranquei
uma página de uma revista que estava no banco de trás e retornei ao
ponto onde estava a moça. Usei o estilete para ajudar a cortar a camisa
dela na altura do umbigo. Amassei a página de revista, embrulhei com o
pedaço de camisa que tinha arrancado e amarrei com força em volta do
rosto da garota, fazendo-a morder a parte onde a página de revista fazia
volume. Uma mordaça. Ainda tinha o problema dos pés e mãos e usei os
cadarços dos tênis dela para resolvê-lo. Era pouco eficiente, mas
serviria provisoriamente. Tudo já estava planejado.
Olhei em
volta. Era uma ruela escura e as únicas portas eram de entrada dos
fundos de estabelecimentos. Não havia qualquer barulho que dos poucos
carros nas ruas adjacentes. Fui até o carro e dei ré até onde se
encontrava a garota. Devia levá-la ao porta-malas e fiz. Procurei por
qualquer coisa que possa ter deixado cair naquele local e voltei para o
carro. O relógio no painel marcava dez para meia noite. Dei a partida e
tomei o caminho de casa: tinha que pegar algumas coisas.
Várias são as razões de eu morar num bairro periférico, entre as quais
se destacam minha tendência de precisar de um lugar só meu, como na
situação em que eu me encontrava, e gostar de ter um jardim. Levei cerca
de meia hora para chegar à minha casa e, logo que desliguei o carro,
consegui escutar algum barulho vindo do porta-malas, que logo se
extinguiu: ela havia acordado. Tinha que pegar mordaça e amarras mais
eficientes rápido. Fui até uma pequena construção atrás da casa, a qual
serve de área de serviço, e procurei por cordas e algum pano. Achei o
que procurava e voltei até o carro, mas me aproximei silencioso do
porta-malas e prestei atenção no que ouvia. Embora ela se agitasse lá
dentro, percebi que ainda não tinha conseguido se livrar das amarras.
Abri o porta-malas: ela estava ofegante, suando muito e ficou exangue
quando me viu. Agarrei os braços, ainda amarrados, dela e acrescentei a
nova amarra à que já estava. Com um pouco mais de trabalho, fiz o mesmo
com os pés. Fiz uma amarra extra juntando as amarras dos pés e das mãos
para que não se debatesse tanto. O pano serviu de reforço para a
mordaça, embora não parecesse necessário. Tendo controlado a situação,
voltei para a pequena construção. Agora estava à procura de mais corda,
luvas e botas de borracha e um capuz que me cobrisse toda a cabeça. Como
num sonho que, por mais absurdo que esse seja, não se percebe que nada é
real, nenhuma lembrança de moralidade pesava em minha mente desde que a
garota entrara no carro. Mas, por um breve instante, ao passar os olhos
pelas minhas prateleiras e fazendo a procura, “despertei” e, junto a um
princípio de desespero, tentei pensar em uma maneira de tudo terminar
bem. No entanto logo voltei ao estado “adormecido” com a sensação
incômoda de ter esquecido algo: o “algo” que lembro agora. Enfim, tinha
achado tudo o que procurava, mas ainda tinha que me trocar, colocar
roupa mais adequada.
Fui até minha casa e, no meu quarto,
tomei uma calça de moletom, uma camisa e um agasalho, roupas velhas.
Arrumei-me, voltei para o carro e joguei as cordas extras no banco de
trás. Eu estava completamente coberto, exceto pelos olhos. O relógio no
painel marcava meia noite e quarenta e um minutos. Dei a partida e me
dirigi ao novo destino: um bosque não muito longe, mas fora da cidade.
Não demorei muito para chegar ao bosque, o qual se chega por estrada
de chão conectada à estrada principal, mas ainda tinha uma parte do
caminho que deveria fazer a pé. Tomei as cordas, meu estilete e a
lanterna. Abri o porta-malas e ela estava se debatendo, embora
visivelmente esgotada. Ela daria trabalho acordada, mas a queria assim.
Cortei com o estilete a amarra que prendia os pés às mãos e a tirei do
carro. Coloquei as cordas enroladas no ombro e fechei o carro. No mesmo
ombro da corda levantei a garota, que tentava me agredir com o resto de
suas forças, e liguei a lanterna. Não tenho mais o vigor de outrora: foi
muito cansativo carregar aquela garota. Andei por um tempo no bosque,
que não tem terreno muito acidentado, até a margem de um rio. Larguei a
garota encostada numa árvore não muito grossa e retomei nas mãos as
cordas que tinha levado. Ela ainda tentava apresentar alguma
resistência, mas mal conseguia se arrastar. Levantei-a até que ficasse
em pé e encostada na árvore. Na cintura passei uma das cordas e
amarrei-a firme junto à arvore. A outra corda eu passei no pescoço,
dando a volta na árvore e as pontas postas na minha mão. Nesse momento
meu coração disparou e começou a me vir a sensação que tanto estava
buscando. Olhei fixo nos olhos azuis dela: estavam arregalados. Comecei a
puxar as pontas da corda. Tinha o poder de vida e morte sobre ela e
isso me extasiava. Puxei ainda mais e percebi que lhe faltava ar: isso
me fascinava. A sensação de poder e, mais que isso, a de exercê-lo
estava me embriagando. Só existia uma forma de concretizar o poder que
eu tinha sobre a vida dela: matando-a. E assim estava fazendo. Ela
começou a perder a consciência e eu sentia como se estivesse vendo a
vida se esvair dos olhos dela. Depois de inconsciente, continuei
apertando mais e mais até que não tinha mais dúvidas sobre sua morte e a
sensação de êxtase tinha passado. Olhei em volta do corpo para ter
certeza de não ter deixado cair nada.
Tinha que se livrar do
corpo. E assim fiz: joguei-o no rio ao lado, o qual corta a cidade.
Certamente o corpo será encontrado, mas dificilmente se determinará em
que altura do rio foi deixado. Tomei tudo o que tinha trazido e voltei
ao carro e, em seguida, para cá, minha casa. A bolsa e a pasta dela,
assim como minhas roupas, luvas, botas, cordas e capuz serão queimados
amanhã com cuidado. O carro limparei também amanhã.
Tudo
parece fácil de ter sido evitado agora que passou: bastava não ter
parado o carro. Mas toda a minha força de vontade foi insuficiente.
Pergunto-me se foi mesmo evitável ou tudo se fez numa seqüência causal
inexorável. Até que ponto vai minha culpa em não ter conseguido
resistir? Também não sinto remorso por mais que minhas noções de moral
martelem, em minha cabeça, o tamanho de minha monstruosidade. Seria isso
também culpa minha? Na verdade, minha moralidade traz uma culpa: a de
não sentir remorso. A terrível verdade é que, se eu fosse um completo
monstro e não me importasse com certo ou errado, estaria em plena
felicidade. Sei disso: foi assim nas primeiras vezes. Deveria me
entregar, já que essa não foi sequer das primeiras vezes, mas consegui
me controlar por um bom tempo: mais que qualquer outro período. Talvez
não aconteça de novo. Agora já está muito tarde: devo dormir e acordar
cedo. Em poucos dias terei muito trabalho investigando este homicídio.
Feito por: Ivan Eugênio da Cunha
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